Por nove anos consecutivos, o Brasil deixou de ser um país de classe média. De 2015 a 2023, menos de 50% das famílias brasileiras tinham renda suficiente para serem classificadas na classe C ou superior. Mas 2024 marcou uma virada histórica: 50,1% dos domicílios voltaram a estar nas classes C para cima, com renda mensal domiciliar acima de R$ 3.400.
O que causou o quase desaparecimento da classe média brasileira? Por que ela conseguiu se recuperar? E, mais importante: essa recuperação é sustentável?
Neste artigo, vamos analisar os fatores econômicos, políticos e sociais que levaram ao encolhimento da classe média, os motivos por trás da recuperação recente e o que o futuro reserva para esse segmento vital da sociedade brasileira.
O Que Define a Classe Média no Brasil
Critérios e Faixas de Renda Atuais
Antes de entender o que aconteceu com a classe média, é fundamental definir quem faz parte dela. Conforme a pesquisa da Tendências Consultoria, as rendas de indivíduos da classe média no Brasil são as seguintes:
Classe A (Alta): Renda acima de R$ 20.000 Classe B (Média-Alta): Renda entre R$ 8.100 e R$ 20.000
Classe C (Média): Renda entre R$ 3.400 e R$ 8.100 Classe D e E (Baixa): Renda até R$ 3.400
A classe média, portanto, engloba as classes A, B e C, representando famílias com renda mensal superior a R$ 3.400. A classe C representa 31% da população, sendo considerada classe média baixa, compreendendo famílias com renda mensal entre R$ 3.400 e R$ 8.100.
O Contexto Histórico: De Maioria a Minoria
É a primeira vez que isso acontece desde 2015, quando 51% estavam ao menos na classe média. Em 2023, os domicílios das classes C, B e A representavam 49,6%.
Esta pequena diferença numérica esconde uma transformação social profunda que afetou milhões de famílias brasileiras nos últimos anos.
As Causas do Quase Desaparecimento da Classe Média
A Crise Econômica de 2014-2016
O principal ponto de inflexão para a classe média brasileira aconteceu durante a maior recessão da história do país, entre 2014 e 2016. No final de 2015, a classe "C" passou de 56,6% das famílias brasileiras para 54,6%, e a classe "D", que correspondia a 16,1% da população, aumentou para 18,9%.
Principais fatores da crise:
1. Desemprego em Massa A taxa de desemprego saltou de 6,8% em 2014 para 13,7% em 2016, o maior patamar da série histórica. Milhões de brasileiros perderam seus empregos formais, principal porta de entrada e permanência na classe média.
2. Inflação Descontrolada No agregado, a inflação brasileira acumulada nesse intervalo ultrapassou 600%. Nos Estados Unidos, o dólar perdeu metade do poder de compra no mesmo período, o que por si só é significativo, mas muito menos drástico do que os quase nove décimos brasileiros.
3. Recessão Histórica O PIB brasileiro encolheu 7% entre 2014 e 2016, a maior contração da economia desde 1930. Empresas fecharam, investimentos foram suspensos e a renda das famílias despencou.
O Aumento do Custo de Vida Sem Reajuste Salarial
Segundo Charone, um dos principais problemas que afetam a classe média é o aumento acelerado do custo de vida, sem que os salários acompanhem essa alta. "Nos últimos dez anos, vimos uma inflação crescente em itens essenciais como alimentação, habitação, educação e saúde, mas os reajustes salariais para a classe média ficaram aquém dessa elevação".
Setores mais impactados:
Habitação: Aluguel e financiamento imobiliário consumindo fatia crescente da renda familiar.
Educação: Mensalidades escolares e universitárias subindo acima da inflação oficial.
Saúde: Planos de saúde com reajustes astronômicos, forçando famílias a abrir mão da medicina privada.
Alimentação: Produtos básicos com aumentos constantes, obrigando mudanças no padrão alimentar.
A Perversa Estrutura Tributária Brasileira
Charone destaca ainda o papel da tributação nesse processo de queda da classe média. "No Brasil, temos uma estrutura tributária que penaliza o consumo, o que atinge diretamente a classe média. Quanto mais essa faixa da população consome, mais tributos ela paga, enquanto os mais ricos, com investimentos e ganhos de capital, acabam se beneficiando de brechas fiscais".
Como isso funciona na prática:
Tributação Regressiva: Quem ganha menos paga proporcionalmente mais impostos. A classe média arca com alta carga tributária sobre consumo (ICMS, IPI, PIS/COFINS).
Elisão Fiscal dos Mais Ricos: Grandes fortunas utilizam instrumentos legais para reduzir a carga tributária através de investimentos, holdings e outras estruturas.
Falta de Progressividade: O Imposto de Renda não é suficientemente progressivo, onerando desproporcionalmente a classe média assalariada.
A Informalização do Mercado de Trabalho
Durante o período de crise, milhões de brasileiros migraram do emprego formal para a informalidade. Isso significa perda de:
- Carteira assinada e direitos trabalhistas
- Acesso a crédito facilitado
- Estabilidade de renda
- Proteção social (FGTS, seguro-desemprego)
- Aposentadoria adequada no futuro
A Polarização Social
A erosão desse estrato fragiliza a própria espinha dorsal da sociedade. O Brasil se tornou um país de extremos: enquanto os muito ricos se protegiam da crise e os muito pobres recebiam auxílios governamentais, a classe média ficou "órfã" de políticas públicas específicas.
Enquanto os mais ricos conseguem se proteger e os mais pobres recebem auxílios, o grupo intermediário arca com impostos altos e pouca contrapartida.
A Espiral da Mobilidade Social Descendente
O Efeito Cascata da Crise
Conforme a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, seriam necessárias nove gerações para uma família pobre alcançar padrão de vida médio no Brasil, o que põe o país entre os piores do mundo.
Como famílias da classe média "despencaram":
1º Estágio - Perda de Renda: Desemprego ou redução salarial forçou corte de gastos.
2º Estágio - Liquidação de Ativos: Venda de carros, imóveis ou saques de investimentos para manter padrão de vida.
3º Estágio - Endividamento: Uso excessivo de cartão de crédito e empréstimos para cobrir gastos básicos.
4º Estágio - Rebaixamento Social: Mudança para bairros mais distantes, retirada de filhos de escolas particulares, cancelamento de planos de saúde.
5º Estágio - Nova Realidade: Entrada definitiva na classe D/E, com padrão de vida significativamente inferior.
O Impacto Psicológico e Social
A queda da classe média não foi apenas econômica. Famílias que se viam como "classe média" tiveram que reavaliar identidade, expectativas e projetos de vida. Isso gerou:
- Frustração com o sistema político e econômico
- Redução das expectativas de futuro
- Impacto na autoestima e relações familiares
- Mudanças nos padrões de consumo e comportamento
A Recuperação de 2024: Como a Classe Média Voltou
Os Fatores da Retomada
A melhora no emprego é o principal fator responsável pela ascensão social dos brasileiros, diz a consultoria: "Desde 2023 houve migração importante das famílias da classe D/E para a classe C, decorrente da melhora significativa do mercado de trabalho no pós-pandemia".
1. Recuperação do Emprego Formal
Um dos símbolos da classe média, que é o emprego formal, também avançou. Foram criadas 3,6 milhões de vagas com carteira assinada de janeiro de 2023 a setembro de 2024.
O aumento do emprego formal foi um dos grandes destaques, com 3,6 milhões de novas vagas com carteira assinada criadas entre janeiro de 2023 e setembro de 2024. Esse avanço levou a taxa de desemprego ao seu menor patamar histórico, de 6,1%, enquanto o nível de ocupação atingiu 58,8%, superando o índice pré-pandemia.
2. Valorização Real dos Salários
No ano passado, a taxa de desemprego chegou ao seu menor nível histórico, de 6,1% no trimestre terminado em novembro, e o nível de ocupação (total de pessoas com trabalho em relação à população total) chegou também ao seu melhor momento: 58,8%. Em 2019, essa taxa era de 56,8%.
3. Crescimento da Massa de Renda
Complementando os outros dados, que foram apresentados pelo estudo é o crescente aumento da massa total de renda, que se elevou, em média, 7% no ano de 2024. As famílias da classe C obtiveram uma renda maior de 9,5%, em um mesmo momento em que a classe B passava por um crescimento de 8,7%.
Políticas Públicas que Contribuíram
Auxílio Brasil/Bolsa Família: O mercado de trabalho aquecido e os reajustes salariais acima da inflação, além da política de valorização do salário mínimo nos dois primeiros anos do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram determinantes para essa ascensão.
Valorização do Salário Mínimo: Reajustes acima da inflação beneficiaram diretamente trabalhadores de menor renda.
Política de Juros: Ciclo de redução da Selic entre 2021-2023 facilitou acesso ao crédito e estimulou consumo.
Desafios e Fragilidades da Recuperação Atual
A Recuperação é Sustentável?
Apesar dos avanços de 2024, especialistas alertam para desafios estruturais que podem ameaçar a sustentabilidade da recuperação da classe média.
Projeções Menos Otimistas para 2025
Neste ano de 2025, a classe C deve, de novo, ter um desempenho melhor do que a média nacional. A Tendências prevê expansão de 6,4% na renda deste grupo, contra 3,8% para o conjunto dos brasileiros. Mas, em qualquer recorte, será um desempenho aquém de 2024, que resultará em uma mobilidade social mais lenta.
A Tendências Consultoria imagina que haverá uma demora no ritmo de desenvolvimento na sociedade em 2025. O aumento e diversificação na renda da classe C, é esperado que seja de 6,4%, superando a média nacional de 3,8%, mas menos expressividade comparado aos anos anteriores.
Obstáculos Estruturais Persistentes
Segundo a economista, o ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la, diante das "baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos".
Principais desafios:
1. Informalidade Persistente: Grande parte dos empregos criados ainda são informais ou precários.
2. Baixa Produtividade: Economia brasileira com produtividade estagnada há décadas.
3. Educação Deficiente: Sistema educacional que não prepara adequadamente para empregos de maior qualificação.
4. Desigualdade Regional: Concentração de oportunidades em poucos centros urbanos.
5. Tributação Regressiva: Sistema tributário que continua penalizando classe média.
O Impacto dos Juros Altos
A alta da taxa básica de juros, a Selic, atualmente em 12,25% ao ano — e que pode chegar a 14,75% no fim de 2025, se as previsões dos analistas se confirmarem —, deve favorecer a classe A, diz Camila, da Tendências.
A Selic está em 12,25% ao ano e pode chegar a 14,75% em 2025, conforme previsões.
Como os juros altos afetam a classe média:
- Crédito Mais Caro: Financiamentos imobiliários e empréstimos com juros proibitivos.
- Desaceleração do Consumo: Famílias posterga compras de bens duráveis.
- Benefício para Classe A: Em contrapartida, as classes sociais mais altas devem sofrer com a reduzida geração de postos na administração estatal na próxima década.
A Realidade Atual da Classe Média Brasileira
Perfil e Características em 2025
Composição Geográfica: Em relação às regiões do país, de acordo com os resultados da Pnad, entre 2019 e 2024, os maiores aumentos entre os 40% com os menores rendimentos ocorreram no Norte (54,7%) e Nordeste (51,1%). A Região Sul (16,5%) apresentou a menor expansão.
Desigualdade Ainda Presente: O Brasil registrou, em 2024, a menor diferença entre os maiores e os menores rendimentos desde 2012. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), os 10% da população brasileira com os maiores rendimentos recebem 13,4 vezes o que ganham os 40% da população com os menores rendimentos.
Os Setores que Mais Empregam a Classe Média
Serviços: Educação, saúde, administração pública, consultoria. Comércio: Varejo qualificado, gestão e supervisão. Indústria: Cargos técnicos e de gestão. Tecnologia: Setor em crescimento absorvendo profissionais qualificados.
Padrões de Consumo e Comportamento
A nova classe média de 2024 é diferente da que existia em 2014:
- Mais Cautelosa: Traumatizada pela crise, evita endividamento excessivo.
- Digital: Maior uso de tecnologia para compras e serviços financeiros.
- Sustentável: Mais consciente sobre impactos ambientais e sociais.
- Flexível: Aberta a novas formas de trabalho (home office, freelance).
Comparação Internacional: O Que Outros Países Fazem
Políticas de Fortalecimento da Classe Média pelo Mundo
Estados Unidos:
- Crédito tributário para famílias trabalhadoras
- Investimento maciço em educação técnica
- Políticas de acesso à propriedade imobiliária
Alemanha:
- Sistema dual de educação (teoria + prática)
- Forte proteção ao emprego formal
- Tributação progressiva efetiva
Coreia do Sul:
- Investimento em educação e tecnologia
- Políticas de desenvolvimento regional
- Apoio a pequenas e médias empresas
Lições para o Brasil
Educação: Necessidade de reforma educacional focada em empregabilidade. Tributação: Sistema mais progressivo que não penalize o trabalho. Inovação: Estímulo à economia do conhecimento e setores de alta produtividade. Regionalizações: Políticas para reduzir desigualdades regionais.
O Futuro da Classe Média Brasileira
Cenários Possíveis para os Próximos Anos
Cenário Otimista (Probabilidade: 30%)
- Manutenção do crescimento econômico
- Reformas estruturais (tributária, administrativa)
- Melhoria na qualidade da educação
- Resultado: Classe média se consolida e cresce para 55-60% da população
Cenário Base (Probabilidade: 50%)
- Crescimento econômico moderado
- Algumas reformas implementadas
- Melhoria gradual nos indicadores
- Resultado: Classe média se mantém entre 50-52% da população
Cenário Pessimista (Probabilidade: 20%)
- Nova crise econômica ou política
- Reversão das políticas sociais
- Aumento do desemprego
- Resultado: Retorno aos patamares de 2020-2023
Fatores-Chave para o Sucesso
1. Estabilidade Política e Econômica Governos com foco na economia real, não apenas no financeiro.
2. Investimento em Capital Humano Educação técnica e superior alinhada às demandas do mercado.
3. Modernização da Economia Incentivo à inovação, tecnologia e setores de alta produtividade.
4. Reforma Tributária Sistema mais justo que não onere excessivamente a classe média.
5. Políticas Regionais Desconcentração de oportunidades para além dos grandes centros.
O Que a Classe Média Pode Fazer
Estratégias Individuais de Proteção e Crescimento
Educação Continuada:
- Investir em qualificação profissional
- Desenvolver habilidades digitais
- Buscar conhecimentos em áreas em crescimento
Proteção Financeira:
- Manter reserva de emergência
- Diversificar fontes de renda
- Evitar endividamento excessivo
Planejamento de Longo Prazo:
- Investir em previdência complementar
- Planejar educação dos filhos
- Construir patrimônio gradualmente
Mobilização Política e Social
Participação Cidadã:
- Acompanhar políticas públicas
- Participar de associações e sindicatos
- Exercer conscientemente o direito ao voto
Pressão por Reformas:
- Apoiar reforma tributária justa
- Defender melhoria na educação pública
- Cobrar transparência nos gastos públicos
Conclusão: A Classe Média Entre o Passado e o Futuro
O que está acontecendo com a classe média é um reflexo direto das políticas econômicas e da falta de planejamento a longo prazo. Se essa situação não for tratada de forma séria, o país corre o risco de ver um aumento significativo da desigualdade social, onde a tão sonhada ascensão social se tornará uma lembrança distante.
A recuperação da classe média brasileira em 2024 é uma conquista importante, mas frágil. Pela primeira vez em nove anos, o Brasil voltou a ser majoritariamente um país de classe média, com 50,1% dos domicílios nas classes C para cima.
Por que quase desapareceu?
- Crise econômica de 2014-2016
- Inflação descontrolada
- Desemprego em massa
- Sistema tributário regressivo
- Falta de políticas específicas
Por que voltou?
- Recuperação do emprego formal
- Melhoria nos salários
- Políticas sociais focalizadas
- Crescimento da economia
O que esperar? O futuro da classe média brasileira depende de mudanças estruturais profundas. Para André Charone, a resposta está na educação financeira e em reformas que promovam uma justiça fiscal real, abrindo caminhos para que a classe média volte a crescer e prosperar.
A classe média é a espinha dorsal de qualquer sociedade desenvolvida. Sua consolidação no Brasil não é apenas uma questão econômica, mas social e política. Representa a diferença entre um país de oportunidades e um país de extremos.
O desaparecimento silencioso da classe média é, também, a morte de um futuro que já não chega. Sua recuperação, portanto, representa o renascimento da esperança de milhões de brasileiros.
A pergunta que fica é: conseguiremos sustentar essa recuperação ou assistiremos a um novo ciclo de retrocesso? A resposta está nas escolhas que fazemos hoje - como sociedade, como eleitores e como formuladores de políticas públicas.
A classe média brasileira voltou. Agora, o desafio é fazê-la ficar.



